Conheça as origens de Mario Balotelli: o abandono na infância, a mãe judia e a aceitação da negritude

Mario Balotelli sorri durante jogo do Olympique de Marselha, da França (Foto: Nicolas Tucat/AFP)

O craque inconsequente, o jogador-problema, o pavio curto. Mario Balotelli tem páginas e páginas de uma reputação construída à base de manchetes estrepitosas e mais confusões do que gols. Mas o atacante pretendido pelo Flamengo é um mosaico de experiências dramáticas que, se não justificam sua fama de rebelde, ao menos podem explicar por que ele parece viver no limite da sanidade.

Mario Balotelli nasceu em 12 de agosto de 1990, em Palermo, na Sicília, filho de imigrantes de Gana.

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Foi batizado como Mario Barwuah e tinha problemas intestinais tão graves que havia medo de que ele morresse durante o batizado. Precisava de uma cirurgia. Aos dois anos, em Brescia, ele foi acolhido por Franco e Silvia Balotelli, italianos brancos que cuidavam dele durante os dias úteis e o devolviam aos pais nos fins de semana. Aos 18 anos, ele se tornou cidadão italiano e demonstrou rancor com os pais biológicos. Disse numa entrevista que eles o abandonaram num hospital e só tentaram se reconectar com ele depois que ele se tornou jogador profissional – aos 15 anos, Mario se tornou o jogador mais jovem a atuar na Série C italiana.

Em 2010, em entrevista a um jornal inglês, Thomas e Rose Barwuah disseram que a separação se deu devido à pobreza extrema. O menino estava doente, e eles tentaram o melhor que podiam. O casal afirmou ainda que tentou recuperar a custódia de Mario por dez anos, mas não tinham dinheiro para advogados e perderam no tribunal.

– Como ele pode dizer que só o estamos procurando por dinheiro? Não é verdade. Não queremos nenhum dinheiro. Somos cristãos – disse Thomas. O casal tem outros três filhos: Abigail, Enock e Angel.

Numa entrevista à “Gazzetta dello Sport”, Mario conta outra história.

“Rose não quis cuidar de mim. Eles desistiram de mim. Quando eu estava com eles, passei mais tempo no hospital do que em casa. Melhorei imediatamente depois da operação. Eles dizem que o abandono é uma ferida que nunca fecha, eu digo que uma criança abandonada jamais se esquece.”

Em carta à imprensa, Mario questionou ainda mais a versão dos pais biológicos. Disse que o acolhimento por outra família foi requisitado por eles e esse regime continuou até os 18 anos de idade por decisão da Vara de Família de Brescia, sendo renovado a cada dois anos. “Por que ninguém pergunta ao senhor e à senhora Barwuah por que eles não tentaram entrar com um processo na corte para me recuperar depois que eu recuperei a saúde? (…) Por 16 anos, eu nunca recebi um telefonema de feliz aniversário.”

Na mesma carta, Mario deixa claro que não responderia mais nenhum apelo público do casal para serem reconhecidos como seus verdadeiros pais. “Eles não estariam fazendo isso se eu não tivesse me tornado Mario Balotelli.”

Mario judeu

Balotelli se sente um pouco judeu por causa de sua mãe adotiva, Silvia. Em 2012, numa Eurocopa sediada pela Polônia, visitou o campo de concentração de Auschwitz. Sentou-se sobre os trilhos e, em silêncio, observou a paisagem, visivelmente impactado. Tempo depois, contaria aos colegas de seleção que Silvia mantinha uma caixa de cartas embaixo da cama, para o caso de ser capturada. Foi até ela que correu a fim de dar um longo abraço depois de marcar dois gols contra a Alemanha naquela mesma Euro, tirar a camisa e eternizar uma comemoração em que mostrava os músculos.

Esses laços judaicos não impediram Balotelli de se colocar numa controvérsia depois de postar uma imagem do personagem Super Mario, da Nintendo, com a frase “Salta como um negro e cata moedas como um judeu”. Ele pediria desculpas depois.

Num outro incidente famoso nas redes sociais, em 2014, Neymar publicou um post antirracista em que dizia “Somos todos macacos”, que foi altamente criticado pelo movimento negro. Dentre os craques internacionais, Mario Balotelli foi quem se juntou rapidamente, postando uma foto com uma banana – fruta à qual ele tinha horror, devido à relação com os pais.

“Ele chorava quando lhe ofereciam bananas no recreio, corria delas. Bananas faziam-no lembrar da África” disse a professora da escola primária Tiziana Gatti ao biógrafo Luca Caioli, que também escreveu sobre Neymar. Segundo ela conta no livro de Caioli (“Balotelli: a Incrível História por Trás das Manchetes Sensacionalistas”, em tradução livre do inglês), Mario tinha medo de que os pais biológicos quisessem levá-lo de volta para a África.

Tiziana guarda uma placa de madeira que Mario lhe deu, com referências ao episódio da raposa no livro “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry.

“O que significa cativar? Significa criar laços. Obrigado por nos cativar, dona Tiziana.

Mario,

Torricella, 1996-2001″

A professora descreve Mario como um garoto hiperativo, o uníco negro entre tantas crianças brancas. Para ela, ele se sentir inferior e à margem. Tiziana não se lembra de nenhum episódio específico de racismo, embora ele mesmo já tenha sido franco a respeito de surras que sofria quando garoto, mas recorda que Mario tentava descontar suas frustrações em quem podia. Lembra que ele era especialmente cruel com um menino sírio que gaguejava. O bullying só acabou quando o garoto sírio apontou Mario ao pai, que o estapeou na cara.

Para Tiziana, Mario fazia e dizia bobagens para estar no centro das atenções; queria ser engraçado e, enfim, aceito. Por dois ou três anos, nos desenhos, Mario pintava a si mesmo como uma pessoa rosada, até entender a cor de sua pele, algo que a professora credita a uma leitura do “Poema a meu irmão negro”, escrito por Léopold Sédar Senghor, o primeiro presidente do Senegal.

“Caro irmão branco,

Quando nasci, eu era negro.

Quando cresci, era negro,

Quando pego sol, fico negro,

Quando adoeço, fico negro,

Quando morrer, ficarei negro.

Enquanto tu, homem branco,

Ao nascer, era rosado,

Ao crescer, ficaste branco,

No sol, ficas vermelho,

No frio, ficas azul,

Amedrontado, ficas verde,

Quando adoeces, ficas amarelo

E ao morrer, serás cinzento.

Então, aqui entre nós,

Qual de nós é o homem de cor?” 

Experiências da infância costumam ser marcantes. O sentimento de abandono, a vontade de ser aceito, as diferenças em meio a colegas tão diferentes, a rebeldia de ter que lidar com as dificuldades do mundo, tudo isso se mistura no coquetel explosivo que se tornou conhecido como Mario Balotelli. Mas não deixa de aguçar nele uma enorme empatia quando se identifica, de certa forma, com crianças que recebem pouco afeto.

O presidente do Nice, Jean-Pierre Rivère, se lembra de ter procurado notícias do atacante antes de contratá-lo como um “acelerador do marketing” do clube da Riviera Francesa. Em 2017, numa entrevista, ele disse que a pesquisa encontrou 20 coisas ruins e “apenas uma boa”.

– Um dia em 2011, depois do treino no Manchester City, Balotelli encontrou um garotinho. perguntou ao menino o que ele fazia ali, e o garoto disse que não queria ir para a escola, porque sofria bullying. Balotelli então levou o menino em seu próprio carro até a escola, para que o garoto pudesse se sentir como um astro, resolvendo assim o problema – conta Rivère – Eu disse então: “Se ele fez isso, deve ter um bom coração”.

Retirado de: O Globo