Entenda como Flamengo e demais clubes lidam com alta da moeda

Escudo do Flamengo é exposto próximo a um dos gols, no gramado do Maracanã (Foto: Daniel Castelo Branco)

Com dólar e euro em alta e o real capotando ladeira abaixo, os clubes brasileiros provam o gosto agridoce do cenário atual do câmbio. É ótimo para quem vende jogadores e disputa competições internacionais, ruim para endividados no exterior e motivo de atenção nas negociações em curso envolvendo moedas estrangeiras.

O processo de desvalorização do real antecede a pandemia do coronavírus. Na sexta, o dólar bateu R$ 5,32. Em 1º de janeiro, estava a R$ 4,02. O euro, por sua vez, fechou a semana a R$ 5,74, contra R$ 4,51 do começo do ano.

No Flamengo, mesmo com o futebol parado, a conversa é em euro, pois é preciso renovar o contrato com o técnico Jorge Jesus. O vínculo atual expira ao fim de maio. A pretensão inicial do português é de € 7 milhões por ano.

A janela de transferências traz sinais do comportamento rubro-negro em relação ao câmbio. Gabigol foi comprado junto à Inter de Milão por € 16,5 milhões — ou R$ 76,6 milhões, já que a cotação do euro usada na negociação era de R$ 4,64, segundo informação no balanço do clube.

Na outra ponta, a principal venda do ano foi a do meia Reinier ao Real Madrid, por € 30 milhões. Além disso, o rubro-negro tem parcelas a receber de outras negociações, como € 2 milhões do Lyon pelo meio-campo Jean Lucas.

O Flamengo já fez a projeção de entradas e saídas de recursos em moeda estrangeira. A aposta é no chamado hedge natural. Há cobertura no fluxo de caixa pelo menos até o quarto trimestre de 2021.

— Hedge é uma proteção. O conceito é que para cada dívida em moeda estrangeira você também tenha receita. O clube também pode fazer uma trava, comprando euro ou dólar antecipadamente com uma cotação estabelecida para não perder o controle — explica o economista César Grafietti.

O rubro-negro encerrou 2019 com 8% do seu passivo em moeda estrangeira. A prestação de contas ainda aponta que 35% dos R$ 87,6 milhões que o Fla tem em caixa são em moeda estrangeira. A administração do clube entende que o risco da variação do dólar não é relevante frente à atual posição patrimonial e financeira.

A confiança do Flamengo passa pela projeção de bom desempenho na Libertadores — no mínimo, alcançando as semifinais. As cotas de participação da competição são pagas em dólar. Na fase de grupos, os times recebem US$ 3 milhões (R$ 15,9 milhões). A Conmebol, inclusive, já avisou que 60% desse valor (R$ 9,5 milhões) serão disponibilizados de forma antecipada. Isso vale para os outros seis brasileiros: Palmeiras, Grêmio, São Paulo, Internacional, Santos e Athletico.

Mercado alterado

Na venda de jogadores para o exterior, a cotação considerada é aquela do dia em que o dinheiro recebido cai na conta. Mas obter receita de fora será tarefa complicada diante parada geral do futebol por causa do coronavírus. A tendência nos mercados tradicionalmente compradores é queda de investimentos. Por isso, as vendas já concretizadas ganham relevância ainda maior.

Pensando nisso é que o São Paulo tenta antecipar junto ao Ajax parte do dinheiro da venda de Antony. Viria a calhar em tempos de receitas escassas. Para o Corinthians, o lado bom é a venda de Pedrinho para o Benfica: 20 milhões de euros.

Quem tem funcionários estrangeiros, assim como o Flamengo, precisa de um cuidado adicional em relação aos contratos. Mesmo se os vínculos tenham sido firmados antes da instabilidade cambial.

— Dólar impacta na compra e na venda. Com salários, tudo depende do contrato de cada clube. Normalmente, faz-se uma proteção diante de variações. Além da negociação da cotação do câmbio, em si, o clube discute também um limite para variação cambial — diz Anderson Barros, diretor de futebol do Palmeiras.

O zagueiro Gustavo Gomez tem contrato balizado em moeda estrangeira no clube paulista. Em casos como esse, a desvalorização do real mexe com o jogador, já que o acordo original foi traçado imaginando um cenário cambial em que o dólar valia menos frente à moeda brasileira. Como o contrato tem as amarras citadas por Anderson Barros, o jogador se vê “perdendo” dinheiro.

O Atlético-MG, do técnico argentino Jorge Sampaoli, também usa a tática do balizamento de valores e do limite de variação.

Ajuda e atrapalha

Para o Vasco, a desvalorização do real foi boa para desafogar as finanças na reta final de março. O clube recebeu 500 mil euros (R$ 2,75 milhões) via mecanismo de solidariedade de uma transação envolvendo o volante Souza. Isso foi crucial para o pagamento da parcela que faltava do 13º de 2019.

O Fluminense encara o outro lado da moeda. O time foi condenado na Fifa por causa dos pagamentos atrasados referentes às negociações de Sornoza e Orejuela junto ao Independiente Del Valle. A dívida é em euro e dólar. O total aproximado, com juros e conversão para real, é R$ 19 milhões. O tricolor vai parcelar e negocia com os equatorianos as formas de pagamento. Na Série B, o Cruzeiro é outro com conta pendurada na Fifa.

— As decisões dos órgãos decisórios da Fifa são proferidas de acordo com a moeda prevista na transação ou no contrato executado. Pode até ser o real, mas em mais de 90% dos casos é dólar ou euro. Assim, quando a dívida se tornar exigível, o devedor deverá comprar dólares ou euros com a cotação do dia do pagamento, o que hoje representa muita coisa — explica o advogado Eduardo Carlezzo.

No Botafogo, o câmbio dificultou as conversas com Yaya Touré. O marfinense mora em Londres e lida com uma libra que vale mais que o euro. Logo, o aumento do valor pedido se deu na tentativa de compensação da desvalorização do real. Para o futuro alvinegro, há alguns gatilhos armados em moeda estrangeira. Bruno Nazário, por exemplo, chegou por empréstimo do Hoffenheim (ALE) com valor de compra fixado em 1,2 milhão de euros.

Retirado de: O Globo